História da Carne-Seca no Brasil

No Brasil, a carne-seca também é chamada carne do Ceará, Carne do sul, Charque, Carne-velha, Jabá, Carne de sol, Sambamba e Sumaca. São mantas de carne, em geral carne bovina, submetidas a processo de salga, e empilhadas em lugares secos, para desidratação e melhor conservação. São muito consumidas em receitas de norte a sul do Brasil, mas principalmente do Nordeste.

Não é raro a utilização dos termos “carne-seca”, “charque” e “carne de sol” como sinônimos; no entanto, existem diferenças basicamente no modo de preparação.

A carne-seca é colocada manualmente em pouca salmoura, empilhada e exposta por pouco tempo ao sol; o produto final mantém algumas características do corte original.

No charque, a salga e exposição ao sol são intensos, as mantas são praticamente enterradas em sal e expostas ao sol por dias; o produto final tem suas qualidades sensoriais muito alteradas.

A carne de sol é preparada artesanalmente, com peças inteiriças e não sob a forma de mantas; também leva menos sal que as outras carnes dessecadas e apesar do seu nome, é deixada em locais cobertos e bem ventilados para desidratação; também é um produto perecível e deve ser mantido sob refrigeração.

Considera-se que a carne-seca tenha surgido na região Nordeste do Brasil nos primórdios da colonização. Os principais mercados consumidores eram Pernambuco e Bahia.

Os mais antigos registros históricos a respeito da carne-seca são do século XVII. Em viagem à Bahia, entre agosto e outubro de 1.610, Pyrard de Laval registrou:

“É impossível terem-se carnes mais gordas e tenras e de melhor sabor. Verdade é que são os mais belos e os maiores bois do mundo. Salgam as carnes, cortam-nas em pedaços bastante largos, mas pouco espessos, quando muito dois dedos de espessura, se tanto. Quando estão bem salgadas, tiram-nas sem lavar, pondo-as a secar ao sol; quando bem secas, podem conservar-se por muito tempo, sem se estragar, contanto que fiquem secas (…)”.

O Rio Grande do Norte e a Paraíba disputaram a iniciativa de industrialização da carne-seca no Nordeste quando, sem nome especial, já nos finais do século XVII, iam barcas de Pernambuco aos rios Açu e Mossoró carregar “carne-seca de bolas”.

Preparação

A carne é desossada e cortada em “mantas” largas mas de pouca espessura; são realizados pequenas perfurações na carne para melhor penetração do sal; é feita salga manual, por toda sua superfície; as mantas de carne são empilhadas para escorrimento da salmoura, e constantemente mudadas de posição, para facilitar a evaporação; são então expostas ao sol em varais, durante 30 a 60 minutos das primeiras horas da manhã e a seguir dobradas e embaladas.

Para efeito de conservação os índios já faziam uso do sal na desidratação da carne, inicialmente de peixes e só depois com outros animais, utilizavam para assar e secar peixes, o “moquen”, uma estrutura construída com varas paralelas que servia de sustentação nessas operações (Pardi, 1961).

No Brasil, as mais antigas referências do uso da carne bovina desidratada são do século XVII: “Quando estão bem salgadas, tiram-nas sem lavar, pondo-as a secar ao sol: quando bem secas, podem conservar-se por muito tempo, sem estragar, contudo que fiquem secas, porque se molham e não são expostas logo e logo a secar ao sol, corrompem-se e enchem-se de germes…”; ou ainda, já no século XIX: “…A carne cortada em tiras estreitas, esfregada com sal e seca ao sol, é um importante artigo de comércio dos portos de São Paulo e Rio Grande do Sul para os portos do norte, sobretudo para o Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão onde, com o nome de carne-seca do sertão, paçoca ou carne charqueada, constitui uma parte principal da alimentação de todo o povo brasileiro…” (Cascudo, 1983).

O produto assim descrito é o “charque”; a palavra charque é termo Quíchua, “xarqui”, cujo significa é carne-seca, o mesmo que, de origem e estilo artesanais do século XVII e com poucas alterações operacionais recebidas pela produção industrial que se seguiu, chegou expressivamente aos dias atuais firmando uma tradição e desempenhando um notável papel econômico-social ao longo dos últimos três séculos que atravessou.

O charque é a carne bovina salgada dessecada, que é o produto obtido pela salga forte de mantas de carne desossada em alguns dias de operação, seguido de sua exposição ao sol, em varais, até atingir o ponto de dessecação que permita a conservação em condições ambientais.

O processo de dessecação, resultante, no caso do charque, da ação desidratante que produz a salmoura saturada na carne, onde o sal também tem um efeito inibidor sobre o crescimento das bactérias em razão de seu íon cloro e da evaporação da água tissular pelo calor solar ou de estufa, além de dificultar o desenvolvimento microbiano, desempenha também outras funções:

Eleva a concentração de açúcar, sais inorgânicos, proteínas e demais componentes do alimento, o que também reduz a atividade de água (Aw) e aumenta sobremaneira a ação conservante.

Em uma revisão panorâmica da história do charque nesses seus três séculos de existência no Brasil, de acordo com relatos de Tomás Pompeu Sobrinho, constata-se que a primeira charqueada que se tem conhecimento entre nós, operava na vila cearense de Aracatí e foi fundada em 1730. Essa atividade propagou-se no decorrer dos anos estendendo a comercialização do charque às feiras e açougues da Paraíba e Pernambuco, onde os criadores de gado da região supriram com seus rebanhos as indústrias de carne-seca situadas em Mossoró e Assú, lugares que até hoje conservam os nomes de “officinas” (Pardi, 1961).

Em decorrência das grandes secas que assolaram o Nordeste nos anos de 1777 e 1778, reduzindo substancialmente o rebanho da região, o saladeiro cearense José Pinto Martins emigrou para o Rio Grande do Sul onde, na cidade de pelotas, em 1780, fundou a primeira charqueada naquele estado, às margens do arroio Pelotas. A iniciativa desse homem empreendedor serviu de exemplo e evolui de tal modo que tornou o Rio Grande do Sul o maior produtor de gado bovino brasileiro, chegando a abater já nos anos 1890/91, um número superior a 450.000 cabeças destinadas exclusivamente à elaboração do charque. Em 1912, em função das exportações, o estado chegou a atingir um volume de 900.000 bovinos e ultrapassou 1.000.000 de cabeças em 1925 (Oliveira, 1980).

No final da década de 50, o Rio Grande do Sul perdeu a liderança da produção de charque para o Brasil Central onde, a partir deste século, foram instaladas inúmeras charqueadas nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. O estado de São Paulo passou a ser o maior produtor nacional, posição que mantém até os nossos dias.

Produto capaz de ser conservado em boas condições por mais de noventa dias no meio ambiente apenas envolto em grosseiros sacos de aninhagem, o charque sempre teve nos mercados distantes de sua fonte de produção, do Norte e do Nordeste brasileiro, a maior região de vendas. Entretanto, nas últimas décadas cresceu assustadoramente nos mercados nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo o consumo de charque e de seu sucedâneo, o Jerked Beef, graças ao extraordinário aumento da população nordestina nesses dois grandes centros e dos novos adeptos desses produtos.

Nos anos 60 e 70, indústrias da carne dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro iniciaram então a difusão no mercado do Jerked Beef, que em princípio seria uma variante do charque, tendo como matéria-prima as carnes de dianteiros e de ponta-de-agulha de bovino, mais tarde se estendo ao coxão duro ao restante do traseiro como um todo.

A palavra “Jerked” derivada do francês “charqui”, é verbo transitivo na língua inglesa, definindo o ato de cortar a carne em fatias ou tiras, secando-as ao sol (“to jerked meat”). É a origem do substantivo “jerked beef” (Webster, 1951).

Este assemelhado veio a ser oficialmente denominado “Carne Bovina Salgada Curada Seca” e comercialmente também com aprovação oficial, de Jerked Beef, denominação esta já usada nos Estados Unidos da América do Norte em um tipo de produto cárneo dessecado.

O Jerked Beef seguiu como segue basicamente os passos da tecnologia do charque em suas fases de salga úmida, da salga seca e da dessecação. A diferença essencial estava em que, incorporado à salmoura, recebia adição de nitrito de sódio ou de potássio e apresentava em teor de umidade significativamente maior, não obstante a legislação, no particular da umidade, viesse a estabelecer para o produto acabado, sem efeito prático, todavia, o mesmo nível limite de 45% do charque.

O Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura, atendendo à solicitação dos produtores de Carne Bovina Salgada Curada Seca, autorizou a comercialização desse produto com até 55% de umidade. A recente história deste produto está fundamentalmente ligada à malsucedida tentativa verificada naqueles anos, de encurtar, por razões econômicas, o tempo de elaboração do charque, que é, em condições normais, de 15 a 18 dias corridos, em uma época em que, embalado em grandes peças (mantas) em sacos de aninhagem ou similares. Abreviando o tempo de fabrico, almejava-se além da maior velocidade da rotação do capital em jogo e do aumento da produtividade, reduzir a quebra de peso do produto que ocorre nas operações da salga, como especialmente na fase de sua dessecação nas condições naturais ao sol ou artificiais em estufa. Duas fortes implicações de ordem técnica, todavia surgiram, criando dificuldades para o “charque frescal”, “charque meia-cura” ou “charque inacabado”, como era denominado no comércio o produto que modificava o charque tradicional: a primeira, dizia respeito à cor acinzentada, não apreciada, que ganhava o produto de elevada umidade em razão da ação oxidativa do sal nessas condições, diferentemente da tradicional e atraente coloração vermelho-vinho do charque quando devidamente processado; a segunda prendia-se a problemas de conservação, que se traduzia na redução da vida comercial do produto, em decorrência do mais fácil desenvolvimento do chamado “vermelhão”, induzindo pela insuficiência da dessecação. Para enfrentar essa problemática conservação, chegou-se mesmo, na época, a utilização por todos os títulos indébita, de agentes conservadores inadmissíveis em alimentos, como o formol, no produto em processo, prática que assumindo proporções de monta e revelando-se em verdadeiro escândalo, culminou com severa repressão punitiva aos infratores.

A solução encontrada pela indústria do ramo para a correção de problemas da cor da conservação – resultantes em última análise da insuficiência de desidratação em um produto preparado para ser exposto à venda, como o charque, nas condições ambientais – foi, primeiro, o de incorporar à carne, via salmoura, o nitrito, de modo a substituir á cor acinzentada pela avermelhada agradável (mais intensa que a do charque tradicional) conferida à carne na primeira fase da clássica reação do pigmento muscular com o nitrito no processo de cura, segundo, o acondicionamento do produto em embalagem laminada de nylon-polietileno a vácuo, acondicionamento que este, na ocasião, começava a ser popularizado em nossa indústria da carne.

Tem-se como certo que o nitrito de sódio foi primeiramente usado na indústria saladeira, com o propósito de melhorar o “charque meia-cura”, pelo Frigorífico Menegon de São Paulo e Frigorífico Sola de Três Rios, no Rio de Janeiro (Santos, 1996).

Esse assemelhado do charque foi oficialmente legalizado pelo Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura (atual DIPOA), que classificou como “Carne Bovina Curada Salgada Seca”, com a permissão da denominação suplementar de Jerked Beef, nome pelo qual veio se consagrar no mercado.

A circular nº 108/DICAR, aprovou este produto, oficializou também seus padrões e estabeleceu rigorosas exigências técnicas relativamente às instalações para sua produção. Este dispositivo, em 1988, foi substituído pela circular do mesmo órgão de nº 109, de 29/08/1988, que reviu as exigências com respeito às instalações e procedimentos higiênicos, embora mantendo sem coerência, na opinião do autor o limite de 45% de umidade para o produto da circular substituía limite que é próprio do charque (Brasil, 1988).

Depois veio a Instrução Normativa nº 22 de 31/07/2000 do Ministério da Agricultura que definiu o regulamento técnico da identidade de qualidade do jerked beef que definiu o limite máximo de umidade em 55%.

 

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